A mitologia egípcia é cercada de fábulas. Uma delas, versão diferente das demais, descreve que Anúbis foi agraciado pela misericórdia de Ísis. Conta-se que, fruto de intrigas passionais e inveja, sentimentos tão humanos para deuses, Seth (Tifon) assassinou Osíris, esposo de Ísis. É a morte do sol, a Terra, num tal momento, vê-se em sombra, enfraquecida e abatida. Como se não bastasse, Seth esquartejou Osíris e espalhou seus pedaços por todo o Egito.
Neste momento, Ísis representa a dor africana, abandonada, desolada, a viúva sai em busca dos membros de seu amado. Na crença do Egito Antigo, o corpo deve ser preservado, deve estar inteiro para que ele possa ser tomado pela alma na segunda vida e ressuscitar dentre os mortos. Por isso, o desespero de Ísis, na tradição popular, a pobre viúva do Egito com suas inconsoláveis amarguras, ela chora, mas nunca desespera.
Nessa fúnebre aventura em busca do corpo do marido, Ísis descobre um ser disforme, sangrento, com sua monstruosidade, um recém-nascido que chora de fome e frio. Para sua surpresa, a criança é Anúbis, um ser com cabeça de cão (chacal), filho do deus Seth, feroz assassino de seu esposo.
Diante de si está o filho de quem lhe causou tamanha dor. A vingança é o primeiro sentimento que passaria pela cabeça de qualquer mortal. Chance única. A criança está indefesa e o ódio que a dor da perda provocara em Ísis, era suficientemente forte para justificar esse ato. Desmembrar Anúbis como o fez o seu pai contra Osíris.
Mas a bondade, o amor e a misericórdia de Ísis superaram todo o sentimento negativo que pudesse brotar naquele instante. Levantou a pequena monstruosidade e, apertando-a contra o peito, alimentou a criança em seu seio. Ísis é a própria ternura e clemência. “Espetáculo verdadeiramente divino! Que toda a Terra o venha contemplar!... A viúva do assassinado alimenta o filho do assassino! Nutrido do leite de bondade, banhado das lágrimas do amor, o monstro torna-se um deus”.